Triste Bahia, ó quão dessemelhante ♪

Transa, de Caetano Veloso, foi lançado em maio de 1972 pela gravadora Philips Records durante o período de exílio do artista em Londres.

Meu primeiro contato com o álbum foi através do documentário Mr. Gaga o qual retrata a vida do dançarino e coreógrafo israelense Ohad Naharin, onde a faixa It’s a long way com a inconfundível voz de Caetano é agregagada ao filme como trilha sonora junto a sequências de diferentes performas de Ohad. Desde então tenho ouvido Transa constantemente pois sua vasta intertextualidade, bem como um baú de tesouros, resguarda uma memória cultural enorme refletida na diversidade de referências tanto musicais quanto extramusicais.

Nesta postagem focaremos na canção Triste Bahia, a única do álbum inteiramente em português e com 9:45 de duração também a mais longa. No que diz respeito á letra, encontramos inúmeras citações de diferentes contextos. A primeira citação lírica encontrada em Triste Bahia é feita ao soneto de Gregório de Matos logo no início da canção. No poema, Gregório de Matos (1623-1696) aborda as mudanças (para pior) na Bahia principalmente em Salvador, naquela época ainda Capital do Brasil (1549 e 1763). Na percepção do Eu Lírico a causa dessas mudanças seria o fortalecimento do comércio, especialmente o aumento de comerciantes ingleses na região. Caetano adapta os dois quartetos de Matos à sua música assim:

“Triste Bahia, ó quão dessemelhante

Estás e estou do nosso antigo estado
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado
Rica te vejo eu, já tu a mim abundante
Triste Bahia, ó quão dessemelhante

A ti tocou-te a máquina mercante
Quem tua larga barra tem entrado
A mim vem me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante”

Na sequência, Caetano dialoga com elementos centrais da cultura baiana e.g. o canto de capoeira Eu Já Vivo Enjoado advindo do disco Capoeira Angola de Mestre Pastinha e sua Academia lançado em 1969:

“Pastinha já foi à África
Pastinha já foi à África
Pra mostrar capoeira do Brasil
Eu já vivo tão cansado
De viver aqui na Terra
Minha mãe, eu vou pra lua
Eu mais a minha mulher
Vamos fazer um ranchinho
Todo feito de sapê
Minha mãe eu vou pra lua
E seja o que Deus quiser
Triste, ó quão dessemelhante, triste
Ê, galo cantou. Ê-ê-ê, o galo cantou, camará
Ê, cocorocô. Ê-ê-ê cocorocô, camará
Ê, vamo-nos embora.Ê-ê-ê vamo-nos embora camará
(…)

A música segue dessa vez fazendo referência á Ponto do guerreiro branco, também uma canção de capoeira gravada em 1969 por Maria Bethânia. Segundo Rafael Julião em seu artigo Triste Bahia, Caetano Veloso e o caso Gregório de Matos:

„Bandeira branca enfiada em pau forte
Bandeira branca enfiada em pau forte
Trago no peito a estrela do norte”

é um fragmento que evoca “as religiões afro-brasileiras que se desenvolveram na Bahia e que influenciaram profundamente o imaginário mítico-musical do samba e da canção brasileira.” Por causa da criminalização e perseguição das religiões afro-brasileiras era corrente o uso de uma bandeira branca para sinalizar uma “casa de santo”. De acordo com Julião “ ‘estrela do norte’ trazida no peito, no contexto de incorporação de ‘Triste Bahia’, marca menos uma filiação a uma entidade, falange ou religião, do que uma filiação a uma cultura, marcada pela presença dessa religiosidade.”

Analisando Triste Bahia em sua parte sonora, ela começa com um tocar de berimbau e Caetano recitando o primeiro verso de forma moderada. Depois de uma pausa fugaz, uma breve introdução de elementos percursivos como tambores, chocalhos e sinos Caetano começa a cantar acompanhado do violão. Outros instrumentos vão sendo aos poucos inseridos até que em “A ti tocou-te a máquina mercante” a música ganha mais densidade com a introdução do baixo, que lembra muito o gingado de capoeira. A música chega em “Bandeira branca enfiada em pau forte” vertiginosamente mais rápida e forte. Deixando latente o entrelaçamento entre o plano lírico e o plano sonoro.

Por: Letícia Romero

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