Antes da reforma de etiqueta do concerto, empreendida por Beethoven­ na­ Europa,­ a música­ era­ feita para entretenimento. O público costumava comer, beber, conversar,­ andar pelo ­salão,­ jogar ­cartas ­ou ­outros­ jogos, ­encontrar-se­ com amantes e cortesãs, enquanto os músicos performavam suas canções. Transformações­ sociais ocorridas­ no­ final­ do­ século XVIII viriam­ a alterar­ de forma drástica a­ relação­ entre músicos­ e­ público­ com­ a performance musical. Beethoven protagonizou essa ­nova ideologia­ tornando-se referência e ao mesmo passo uma sombra para os futuros músicos com sua reputação de gênio criador individual. Com isso, a obra de arte passa a ser mensurada a partir do artista como indivíduo. Seus esforços levaram também o público a mudar seu comportamento diante­ da performance­ musical. A apreciação ­passa­ a­ ser ­solene, ­ritualística, ­quase ­religiosa.

No século posterior, as revoluções­ Industrial­ e ­­Francesa ­provocam­ profundas­ mudanças sociais.­ O Iluminismo sai da Europa e ganha o mundo. Com a decadência do Império brasileiro, ­as ­ideias­ europeias começam a se espalhar no país ganhando apreço popular. A chamada “aristocracia do gosto” vem a ser utilizada no Brasil como instrumento de discriminação às manifestações de origem negra, já que a participação brasileira no tráfico de escravos para as Américas era a mais ativa da época. Surge então um projeto de “higienização da cultura” que visa apagar os traços culturais africanos tanto na música, quanto no comportamento do público e dos próprios músicos. O conceito de música dita “séria” passa a ser uma importante ferramenta desse projeto. Nos grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, que aspiram esse ideal civilizatório burguês,­ as contradições­ geradas­ entre­ a­ ideologia­ da­ música­ dita­ “séria”­e­ as ­concepções­ das ­pessoas mais ­pobres, ­fortemente centradas­ na ­cultura ­africana, ­ajudam­ a ­compor­ essa ­trilha sonora ­do ­Império­ já­ decadente e de algo novo que vai surgir.

Pixinguinha,­ negro, nascido­ em­ 1897, ­músico­ talentoso, vem a ser considerado­ por muitos ­o­ “pai ­do choro” pois sua arte foi fundamental par­a­ a consolidação ­do ­choro ­como gênero. Sua excursão a Paris com o grupo Os Oito Batutas em 1922 ganhou muita repercussão no Brasil, tanto positiva quanto negativa. Por um lado, a música brasileira ganha o mundo, por outro­, a ­preocupação­ de ­alguns grupos­ com­ o­ fato do Brasil ser representado por pessoas negras. Uma parte da imprensa e de críticos nacionalistas fica escandalizada com o sucesso daqueles “pardavascos” (quem nasceu de pais negros e mulatos ou de pais negros e índios) em Paris representando a música brasileira com um tipo de música “rudimentar”. A composição ­Carinhoso de Pixinguinha foi alvo, em 1929, do crítico Cruz Cordeiro:

“Parece­ que­ nosso­ compositor­ anda­ muito­ influenciado­ pelos­ ritmos ­e ­melodias ­da ­música ­de ­jazz. ­É o­ que ­temos notado desde algum tempo e, mais uma vez, neste seu choro ­cuja ­introdução ­é ­um ­verdadeiro ­foxtrote, ­que, ­no ­seu decorrer,­ apresenta ­combinações ­de ­pura ­música ­popular­ ianque. ­Não ­nos ­agradou” ­(CORDEIRO­ apud CAZES, 2010, p. 70).

Percebe-se que a preocupação em denunciar as influências do Jazz na música de Pixinguinha é grande, o que leva a ideologia da música “séria”, que na verdade vem da Europa, a cair um tanto em esquecimento. Desconsiderar os efeitos culturais causados pelas tendências estado-unidenses no ­mundo­ seria obviamente descabido, porém, o importante aqui é o fato de que Pixinguinha, ao aproximar o choro da linguagem do jazz americano, ele acaba entrando em contato com outras diásporas de ­matrizes ­africanas.

Jacob­ do­ Bandolim, assim como Pixinguinha, é um dos pilares do choro e inovou o gênero pelo nível de sua performance de instrumentista, além da sua vasta obra como compositor. Como o nome já diz, tocava o bandolim, imortalizando assim on instrumento como um dos ­símbolos­ do­ choro. Começou sua carreira como músico profissional na rádio, mas em 1943 presta concurso e passa a ser funcionário público, cargo que lhe proporciona mais autonomia para conduzir sua obra, protegendo-a das influências da indústria cultural. Cazes (2010) traz em seu livro Choro do quintal ao municipal o capítulo onde aborda a importância de Jacob do Bandolim para o gênero, sob o título de Jacob, o choro levado a sério (p. 99), título este que afirma a obra de Jacob como ­dita “séria”, fator que lhe garantiu seu lugar no Olimpo.

Na década de 1930 até aproximadamente a de 1970, a conhecida Era do Rádio, o Choro passou a ser relegado pela grande massa, já que as rádios davam mais destaque à música cantada. Este fato fez com que diversos chorões desistissem do Choro ou ficassem por detrás das cortinas, tocando como amadores. Como levar então o Choro adiante. É só passá-lo pelo crivo do conceito de música “séria”, transformá-lo ­num­ produto ­de­ grife, direcionado para público especializado e “sério”. Entre 1950 e 1960, Jacob promovia em sua casa rodas de choro para tal público, mas com com um detalhe que não pode passar despercebido:

A­ organização­ do­ sarau­ era­ algo­ milimetricamente­ planejado. Para se ter uma ideia, Jacob por vezes cortava seu ídolo Pixinguinha da lista de convidados. O problema é que o velho mestre costumava carregar uns chatos a tiracolo, especialmente um conhecido como Carijó, de quem Jacob tinha verdadeiro horror. A música vinha de fato em primeiro lugar e a bebida era consumida com parcimônia a intervalos periódicos. O silêncio era total durante a música, e ai daquele que ousasse abrir a boca fora de hora! (sic), pois­ Jacob­ não­ exitaria­ em­ esculhambá-lo­ publicamente. (CAZES, 2010, p. 114)

Este trecho nos mostra que para esse novo público especializado a forma de “chorar” ­de Pixinguinha­ estava ­fora­ de ­moda, tendo assim que abrir espaço para uma nova concepção, mais ­“séria”,­ mais aristocrática. Um ­choque ocorre então ­entre­ estes dois ­“projetos” ­de­ choro. Cazes (2010) descreve o objetivo de Pixinguinha com sua música:

Ao que parece, o objetivo de Pixinguinha era criar ­uma­ música ­para ­dançar ­a ­partir ­das­ matrizes ­afro-brasileiras, com elementos do choro e do samba. Pelo que dá para ouvir, ele acertou no alvo. Embora a música tenha dado certo, comercialmente o formato foi gradativamente desaparecendo. (CAZES, 2010, p. 69)

Em um depoimento de Pixinguinha em 1967 ele esclarece um pouco mais a diferença entre a sua ­concepção ­de ­roda ­de ­choro ­e a de ­Jacob:

Naquele­ tempo­ não­ haviam­ (sic)­ clubes­ dançantes.­ Os­ bailes eram feitos em casa de família. Em casa de preto a festa era na base do choro e do samba. Numa festa de preto havia o baile mais civilizado na sala de visitas, o samba nas salas do fundo e a batucada no terreiro. Era lá que se formavam e se ensaiavam os ranchos. A maioria dos­ sambistas ­e ­dos­ chorões ­era ­de ­cor. ­Branco­ quase­ não­ havia.­ (PIXINGUINHA­ apud­ PEREIRA,­ 1967,­ p.­ 226)

Neste depoimento nota-se duas concepções de choro que se contrapõem. A de­ Jacob­ do Bandolim,­ onde­ a performance ocorre em rodas “sérias”, com público especializado e pouco consumo de álcool;­ e a­ afro-brasileira­ de­ Pixinguinha, onde a performance ocorre nos quintais ­e terreiros, ­com ­música festiva para ­dançar­ e­ celebrar.­ Em um país onde a Europa é tida como modelo ideal­ de civilização,­ o­ batuque­ e­ a­ dança­ são­ de fato bravatas.­

Com o termo “civilizado” Pixinguinha provavelmente refere-se a essa ideia­ eurocêntrica e­ racista­ de­ civilização,­ pois sabe-se que­ as­ manifestações­ culturais­ de­ origem­ popular­ e negra,­ bem como­ as­ suas práticas religiosas, eram severamente reprimidas pela polícia da época. É exatamente­ nesse­ ponto­ que­ evidencia-se o desenho brasileiro ­na ­questão ­da­ dita música ­“séria” sendo ­utilizada ­como­ instrumento­ de discriminação,­ já­ que­ na terra dos canarinhos tal discriminação também se dá através do racismo. A ­roda, enquanto­ instituição,­ regula d­o ­comportamento­ humano­ de­ acordo­ com­ as­ demandas­ por­ uma­ hegemonização eurocêntrica. Seria esse um caso de racismo institucional?

Por fim gostaria de frisar que o objetivo deste post não é acusar fulano, cicrano ou beltrano de ser racista, e sim compreender, na estrutura, os processos sofridos pelo choro enquanto gênero, que o levaram de música festiva à ­concepção ­mais camerística, ­restrita ­a ­um público seleto. ­O­ elemento­ racial está dado, mas é estrutural e não individualista.

Bibliografia

CAZES, Henrique. Choro – Do Quintal ao Municipal. São Paulo: Editora 34, 2010.

PEREIRA, ­João ­Baptista ­Borges. ­Cor, Profissão e Mobilidade: O negro e o rádio de São Paulo. São Paulo: EDUSP, 1967.

Por: Gustavo Guimarães