Vida espiritual dos Povos Originários

Grafiti do Artista Hyperaton no centro de Belo Horizonte/ Foto: Júlio Matias

“Eu não falo de religião, eu só falo de espiritualidade. Por que religião é como uma associação, é como um instituto, é igual. Tem seus estatutos, tem sua norma. Espiritualidade é sagrado. Espiritualidade é soberana. Espiritualidade não tem maior e nem menor. Espiritualidade não tem cor, não tem raça, não tem língua. Espiritualidade é sagrado. É santíssimo universal. ”

Bira Yawanawá, para V. Moon (Híbridos palavras)

Embora venha perdendo adeptos, o Catolicismo ainda continua sendo a religião predominante no Brasil. Segundo uma pesquisa do DataFolha publicada em 28 de dezembro de 2016, nos últimos 20 anos, o número de brasileiros que se autodeclararam católicos caiu de 74 para 50 porcento. Já o percentual de evangélicos e pentecostais dobrou de 15 para 30 porcento. A pesquisa também apresenta dados de outras religiões, que com 7% mativeram-se estáveis nesse período, com exceção do número de pessoas sem religião, que subiu de 7 para 14 porcento. Entre “outras” a pesquisa enumera Kardecista, Judaica, Umbanda, Candomblé e outras religiões de matriz africanas. É intrigante que “religiões indígenas“ não constem na pesquisa. Seria uma amostra das práticas religiosas em comunidades indígenas não representativa para a pesquisa? Ou será que os povos originais não têm releigião?

De antemão, o termo “religião indígena” merece ser criticado, conforme aponta Schmidt (2016):

O termo “religião indígena“ ofusca a ampla diversidade de crenças e práticas da população ameríndia no Brasil, que pode ser dividida como pertencente a 305 nações aborígenes, com 274 línguas diferentes.

Bettina E. Schmidt (2016) Contemporary Religions in Brasil, p. 11. Oxford Handbooks.www.oxfordhandbooks.com

Para se ter uma dimensão desses números, basta observar que a população ameríndia, em um país de mais de duzentos milhões de habitantes, não chega nem a um milhão, sendo que em 1500 ultrapassava os três milhões. De fato, grande parte da população indígena atualmente é católica, quando não evangélica. Inclusive, há pastores indígenas que trabalham na evangelização de suas próprias etnias, conforme matéria da Folha de São Paulo de 5 de janeiro de 2019.  Ainda  sobre esse assunto, vale a pena ouvir o episódio 25 do Teolabcast sobre Povos Indígenas, autodeterminação e evangelismo.

Sem discorrer sobre a diferença entre evangelização, cristianização e catequização, é importante ressaltar que os povos indígenas possuem um sistema de crenças que não exclui, mas agrega. Portanto, elementos cristãos são assimiláveis dentro de suas práticas facilitando o processo de conversão, o que nos remete ao choque entre a cosmovisão dos povos ameríndios pré-1500 e o catolicismo medieval do colonizador europeu. Lembremos que o êxito de qualquer projeto de conquista respalda-se na imposição da língua e crença dominador. Você deve lembrar-se da Carta de Pero Vaz de Caminha. O que foi feito no quarto dia depois de a frota de Cabral atracar em Porto Seguro? Que foi celebrada uma missa, precisamente no domingo de Páscoa, 26 de abril de 1500, pelo padre Frei Henrique (há exatos 520 anos!). O Dia do Índio, celebrado em 19 de abril, está relacionado a um encontro de lideranças indígenas no México, em 1949. Ironicamente, podemos também associa-lo ao último fim de semana em que os Tupinanambá tiveram sossego antes do início de uma longa era de genocídio.

O trabalho de catequização indígena foi realizado pelas Missões Jesuíticas, responsáveis pela criação de uma língua geral, com a qual podiam comunicar-se com todas as etnias e impor brutalmente o cristianismo. A documentação sobre a espiritualidade original da época consiste predominantemente de relatos de jesuítas ou cronistas, que enxergavam os povos e suas culturas sob o prisma de um catolicismo medieval, predador e reducionista, no qual se encontrava a justificativa para a colonização. Não por acaso, escreveria Gândavo em 1576 que os povos indígenas viviam sem Fé, sem Lei e sem Rei.

Sabeh (2009, 41) aponta que “o encontro de povos que não conheciam a fé de Cristo significava, para os cristãos devotos, o reencontro com as regiões que Deus havia criado e que se afastaram da ’civilização’”, ou seja, a colonização era o meio através do qual os povos não europeus teriam suas almas salvas e passariam a fazer parte do “mundo civilizado”, ao perderem sua língua, sua cultura e seu sistema de crenças. A mesma justificativa encontraremos na escravização de povos africanos, como veremos em um dos próximos posts.

Isso tudo para dizer que a documentação material sobre a complexa cosmovisão dos povos originais em mais de 400 anos, partiu da perspectiva do colonizador branco. Muito posteriormente, vários antropólogos não-índios esforçaram-se por mudar essa perspectiva, como na seminal obra de Darcy Ribeiro (1922-1997), que no livro „O povo brasileiro“ descreve o contato dos povos originários com os portugueses a partir de cosmovisão dos Tupinambá.

Os índios perceberam a chegada do europeu como um acontecimento espantoso, só assimilável em sua visão mítica do mundo. Seriam gente de seu deus Sol – Maíra -, que vinha milagrosamente sobre as ondas do mar grosso?

Darcy Ribeiro (2006) O povo brasileiro. p. 38, Companhia das Letras

Não obstante, a espiritualidade indígena é dificilmente palpável à compreensão e, sobretudo, à nossa percepção, impregnada por modelos cristãos de representação e interpretação do mundo. Os povos originais percebem todos os elementos à sua volta, toda a natureza, com seus diversos espíritos, em constante movimento. Bicalho (2010, 19) observa que os Maxakali utilizam a mesma palavra (yãmîy) para designar seus cantos e suas infindáveis entidades espirituais. Numa live da Rádio Yandê sobre Cosmovisão, Filosofia e Conhecimento Indígena (18/4/2020), Daiara Tukano, Jaider Esbell, Denilson Baniwa e Anapuaka Tupinambá discutem sobre como os povos indígenas caminham entre um mundo físico e um mundo sobrenatural e cósmico. Embora a própria palavra espiritualidade seja problematizada na discussão, ela parece resumir a miríade de energias múltiplas, dinâmicas e ancestrais que transitam e habitam entre os elementos do mundo físico. Como disse anteriormente, assimilar as cosmovisões indígenas só é possível através das palavras dos próprios parentes. Por isso separei um trecho da live da Radio Yandê e três vídeos da série Híbridos do diretor Vincent Moon, que fez um sério e abrangente trabalho de documentação de rituais no Brasil. Assista à live e aos vídeos com MAYAWARI MEHINAKO, Bira Yawanawá e o escritor Daniel Munduruku para a série e faça as tarefas.

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