A pluralidade religiosa popular

Neste post precisei puxar o fio da memória para falar sobre a diversidade e o sincretismo da vida religiosa no Brasil.

Sunset at Praça do Papa – Carlos Alberto Santos –https://flic.kr/p/4AQLZ

Um mês de férias no Brasil, aeroporto de Porto Alegre. Meu pais vêm me buscar. Fez boa viagem, Tudo ótimo, Graças a Deus, Tá chique, que cabelo bonito, mas cê emagreceu, e a Chiquita? Beijos, sorrisos e abraços. Poucos passos até o estacionamento. Bagagem no porta malas, entramos, sentamos, meu pai procura na carteira o bilhete, dá a partida e logo aperta o botão do CD player deixando entoar a trilha sonora dos próximos 90 minutos e de toda minha estadia em Sapiranga: um cd triplo do rei Roberto Carlos, reunindo todas as músicas religiosas de sua carreira de mais de meio século. Numa das canções, repetidamente tocada no carro, o cantor evoca profundas imagens de sofrimento, angústia, penúria e dor a fim de rogar pela proteção de Nossa Senhora. 

Cura-me as feridas e a dor me faz suportar
Que as pedras do meu caminho, meus pés suportem pisar
Mesmo ferido de espinhos, me ajude a passar

Roberto Carlos, Nossa Senhora

Num ponto da viagem, quero perguntar desde quando eles são góticos ou se o suplício anda pairando sobre suas vidas na pacata cidade interiorana. Não haveria ali um pagode, um axé que fosse, alguma coisa mais pra cima? Alegria! Festa! Estou no Brasil! Mas não quero ser indelicado, mesmo porque 14 faixas depois, já estaríamos em casa.

Levo minhas malas para o quarto. Ao lado do guarda-roupas, no canto direito, meu olhar é capturado por um singelo mas presente altar, que se estende sobre a cômoda forrada por uma toalha branca. Uma vela também branca acesa num prato igualmente branco, um copo d’agua, ao lado uma foto da Virgem Maria em lágrimas, uma imagem da Santíssima Trindade e uma de São Judas Tadeu, igual àquela que eu levo na carteira. O mais suntuoso é um crucifixo de mesa, que meu pai, em Canela, numa das minhas visitas, comprara na loja da Igreja Nossa Senhora de Lurdes, uma construção de estilo Neogótico aberta em 1987.

Catedral de Canela – Foto de Glauco Umbelino – https://flic.kr/p/4SxHn6

Vida, morte, amor, lembrança e fé convergem-se no altar, onde também estão escritos momentos da nossa história familiar. O santinho com a foto da minha falecida avó Conceição, matriarca de uma família de doze filhos, outra de minha mãe com todos os seus irmãos, uma rara foto onde estamos meu pai, minha mãe, minha irmã e eu reunidos, uma outra foto do casamento de meus pais e, claro, muitas fotos minhas. Há também fotos da netinha, minha filha, da sobrinha e uma bíblia aberta, não me pergunte em qual página.

Apesar do altar e sua iconografia  sacra, eu não diria que meus pais são católicos. Ouso até duvidar que minha mãe saiba o nome do Papa. Mas do João Paulo II ela certamente se lembra, até porque ele esteve em Belo Horizonte em primeiro de julho de 1980, sendo recebido aos gritos de “Ei, ei, ei! O Papa é nosso rei”. Na época eu tinha um ano e meio, portanto, a visita do pontífice me passou despercebida. Todavia, lembro-me bem que nos anos 80 eram muito comuns os calendários estampados com uma imensa e mórbida foto da santidade polaca. Na minha infância, eu costumava ir à casa de uma benzedeira, a Dona Elvira, quando estava aguado ou para desvirar o vento, tirar quebranto ou olho gordo. Ela tinha na sala não só o calendário, como também um relógio de parede com o papa, e me benzia percorrendo minha testa, olhos, boca, nuca nuca e costas fazendo o sinal da cruz com um terço e proferindo rezas. Eu adorava visita-la. A sabedoria popular das benzedeiras é envolta em mistério e transmitida de geração em geração. Creio que nos grandes centros urbanos elas tenham se tornado mais raras. Mas naquela época eram bem comuns, assim como as procissões, nas quais o meu primo Marcelo fazia deslumbrantes, mas efêmeros tapetes de serragem, que seriam depois desmanchados pela passagem do cortejo. Também me recordo de altares nas casas de muitas pessoas, inclusive na nossa.

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