Lembranças da época da São Silvestre

Durante os quase 30 anos que vivemos na Rua São Silvestre, tivemos um altar, muito mais modesto do que aquele da atual casa de meus pais em Sapiranga. Ele tinha tinha só a vela branca sobre o prato e o copo d’água e ficava em baixo do tanque de lavar roupas (depois de uma reforma, o altar seria deslocado para um lugar em baixo da goiabeira do quintal). O curioso é que meus pais não eram lá de frequentar a igreja. Na verdade, minha mãe era afeita a passeios pelo Cemitério da Saudade em seus momentos de distração, incluindo também o Parque da Colina no Dia dos Finados. Ás vezes, ia ao Santuário São Judas Tadeu para rezar pelos entes queridos e, sobretudo, pelas almas benditas do purgatório. Meu pai, por sua vez, só ia a cemitério quando tinha velório. À Igreja, só mesmo quando havia missa de sétimo dia ou casamento e esporadicamente por ocasião de um batizado ou missa de formatura. Na verdade, as velas daquele simples altar na nossa antiga morada eram acesas nos dias em que ele ia ao centro espírita, que só mais tarde fui entender que era um Centro de Umbanda. Até 2008, quando me mudei para a Alemanha, tive um vínculo físico de muito carinho e respeito por aquele espaço, aonde íamos pedir proteção e agradecer às falanges espirituais pelas nossas conquistas.

Minhas primeiras recordações devem remontar aos 6 ou 7 anos de idade. Frequentávamos o centro toda terça e sexta à noite, por volta das sete e meia. O salão ainda fica numa humilde casa colonial na Rua João Gualberto Filho. Talvez houvesse ali uma pitangueira. Em todo caso, a casa tinha um jardim bem cuidado, muitas plantas e ervas.Um corredor ao lado direito levava até a porta de entrada do salão e a uma pequena horta no fundo da casa.

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Pela esquerda entravam os homens e pela direita as mulheres. Do alto do forro de pinus castanho avermelhado, cinco luminárias em estilo art deco espalhavam sobre o chão de cimento batido uma calorosa luz amarela. No fundo esquerdo, sobre as amplas janelas que se abriam para o luar, ficava pendurado um relógio de pêndulo. No alto da parede do lado oposto, imagens de Jesus, Maria e da Santíssima Trindade. Tenho uma saudosa lembrança da minha madrinha, Otacília, uma mulher firme, mas de infinita ternura. Cabelos pretos, curtos, o rosto redondo, bronzeado e oleoso trazia um sorriso mais brilhante que seus balangandãs. Os encontros com ela eram sempre de imensa alegria e afeto. Não consigo me lembrar da causa de sua morte, mas sei que ela nos deixou bem jovem.

Rua João Gualberto Filho em Belo Horizonte

Chegavam mais pessoas. Os médiuns, como pai, retiravam-se para um cômodo reservado, onde se preparavam. Saiam vestidos de branco, as mulheres com longas saias rendadas, e sentavam-se à comprida mesa no meio do salão, forrada de branco e decorada com um vaso de flores. Ficavam em silêncio, todos concentrados, e os trabalhos se iniciavam depois de apagadas algumas das luzes.

Então meu pai adentrava o salão com um defumador. O perfume de alecrim, benjoim, alfazema e arruda ainda hoje transportam-me imediatamente àquelas noites. Janelas fechadas, o salão à meia-luz, Luizinho iniciava a seção rezando o Pai Nosso, a Ave Maria e um Salve a Rainha. Após as preces, havia uma leitura do Evangelho Segundo o Espiritismo, de Alan Kardek, e em seguida, vinham os cânticos. Todo o trabalho de mediunidade acontecia com base na voz e, ocasionalmente, nas palmas. Não havia nenhum instrumento de percussão. Só mais tarde tive a experiência de um ritual com tambores. Á medida que os cantos eram entoados, os médiuns cediam seus corpos à entidades e espíritos desencarnados.  Aconteciam sessões de aconselhamento, descarrego, passes. Quando alcançávamos algum desejo ou objetivo, pelo qual tínhamos lutado e nos esforçado, agradecíamos aos guias espirituais fazendo algum trabalho de caridade, oferecendo doces e balas na festa de Cosme e Damião ou levando uma boa farofa de frango para alguma das reuniões. Boa lembrança.

Meus pais sempre fizeram questão e até mesmo exigiam que tivéssemos uma religião. Frequentávamos o Centro de Umbanda no meio da semana, mas no domingo, tínhamos que ir quase que obrigatoriamente à igreja católica e ao catecismo, tanto que cheguei a fazer primeira comunhão. Mas para a chamada crisma, uma catequização para adolescentes, realmente não tive saco. E acabei conhecendo, junto à minha irmã, um grupo de jovens Kardecistas, na Rua Maria Martins Guimarães, do lado da casa do meu tio Jorge. Frequentei lá por uns três anos, sem deixar de ir no centro do meu pai. Então, quando entrei na faculdade, tive pela primeira vez contato com o Santo Daime, cujo relato vai ficar para uma próxima oportunidade.

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