O que os números não revelam

O meu relato traz alguns aspectos da religiosidade popular brasileira que servem para relativizar os números das pesquisas quantitativas, os quais ocultam a complexidade das interseções religiosas que permeiam a vida de grande parte dos brasileiros. Negrão (2008) observa que o problema de tais pesquisas reside justamente no fato de que elas “supõem unicidade de crença e pertença como a única possibilidade de vivência religiosa”, desconsiderando o traço mais peculiar e interessante da trajetória dos entrevistados, que consiste na “duplicidade ou mesmo a multiplicidade de crenças e de participações” (Negrão 2008, 269). Isso reflete o papel dominante das principais instituições eclesiásticas, embora elas atravessem “uma crise de autoridade no mundo moderno plural e secularizado, em que a religião se torna, cada vez mais, subjetivamente relevante” (idem). Ou seja, a hegemonia da Igreja Católica, ainda perceptível nos resultados das pesquisas, apaga o caráter sincrético do próprio catolicismo brasileiro.

Conforme o dicionário Houaiss, sincretizar significa “1. integrar (elementos de diferentes correntes) numa síntese, 2. combinar ou tentar combinar elementos (díspares); conciliar ou tentar conciliar (concepções heterogêneas).” Apesar de o sincrestismo ser emblemático em práticas religiosas de matriz africana, bem como nas chamadas doutrinas “New wave”, ele é flagrante tanto no escopo individual quanto em diversas práticas religiosas tidas como ilegítimas pela instituição católica. Para efeito ilustrativo, lembremos do jagunço Riobaldo, protagonista do clássico Grande Sertão Veredas, cuja visão religiosa sintetiza primorosamente essa característica.

Hem? Hem? O que mais penso, tenso e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço. Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim, é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca.

Rosa, Guimarães (2019) Grande Sertão Veredas. Lisboa, Penguin. 22. ed. p. 23

A fala de Riobaldo é um bom exemplo da distinção individual entre fé e religião (cf. Boff 1994, 166), bem como do sincretismo religioso popular manifesto no seio do próprio catolicismo e das doutrinas pentecostais e neopentecostais, para cuja presença Rosa já atentava em Grande Sertões. Sem embargo, a peculiaridade dessa relação eclética com o sagrado afasta-se da instituição eclesiástica oficial, atendendo a uma lógica individual e subjetiva de relação com o divino, que se apresenta como um ponto fora da curva, conforme aponta Eduardo Hoornaert (2002) ao revisitar a obra de Thales de Azevedo.

Na sua imensa maioria, a população brasileira é católica “sem igreja”, escapa à igreja. De forma lapidar: muito santo pouco sacramento, muita reza pouca missa, muita devoção pouco pecado, muita capela pouca igreja. Um catolicismo antes epicurista que estóico, antes “dionísico” que “apolíneo”. Tudo isso sem quase nehnum sustento institucional especificamente católico, num vasto campo religioso eventualmente aberto às mais diversas institucionalizações provenientes dos horizontes culturais do país.

Hoornaert, Eduardo (2002) Fora do figurino. In: Azevedo, Thales. O catolicismo no Brasil. Salvador, Edufba p. 13

Com efeito, esse catolicismo fora da curva estaria relacionado, por um lado, ao fato de a Igreja durante o período colonial recorrer a clérigos de patente inferior na hierarquia eclesiástica para realizar a catequização no interior do país, deixando o vínculo institucional com Roma concentrado nos centros urbanos ao longo do litoral brasileiro. Por outro lado, o catolicismo era compulsório. Assim, quem nascia no Brasil era automaticamente católico, enquanto índios, negros escravizados e até judeus eram obrigados a se converter, praticando deste modo um catolicismo para inglês ver:

Importava mais parecer do que ser católico. Era vital ir à missa e rezar publicamente, respeitar os dias santos, batizar seus negócios com nomes de santos católicos. Para fugir da escravização ou de terem de embrenhar-se nos sertões em que eram caçados pelos bandeirantes, os indígenas predispunham-se a aceitar os aldeamentos onde eram cristianizados e doutrinados. Os negros continuaram a homenagear seus deuses ancestrais identificando-os com santos católicos e realizando seus rituais diante de altares; os judeus, freqüentando missas e rezando corretamente. Criou-se uma religião necessariamente formal e exterior, muito pouco internalizada ou de convicção pessoal, traço que ainda persiste em boa parte dos católicos brasileiros. (Negrão 2008, 263)

Nesse contexto, as práticas de benzedeiras e curandeiros, capelas de beira de estrada, altares domésticos para o culto de diversos santos, bem como determinadas festas e folguedos, embora não reconhecidos institucionalmente pela Igreja, encontram legitimidade no sistema de crenças das pessoas, que inclusive mesclam doutrinas conforme o que lhes mais convém espiritualmente. No livro Igreja, Carisma e Poder Leonardo Boff (1994) faz uma crítica à estigmatização desse sincretismo, ao argumentar que a síntese e reinterpretação de elementos sagrados de diversas doutrinas é intrínseco ao próprio cristianismo. Neste sentido, conforme a fala de Riobaldo, na religiosidade popular brasileira, o que mais importa é rezar e ter fé.

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