O que os números não revelam
O meu relato traz alguns aspectos da religiosidade popular brasileira que servem para relativizar os números das pesquisas quantitativas, os quais ocultam a complexidade das interseções religiosas que permeiam a vida de grande parte dos brasileiros. Negrão (2008) observa que o problema de tais pesquisas reside justamente no fato de que elas “supõem unicidade de crença e pertença como a única possibilidade de vivência religiosa”, desconsiderando o traço mais peculiar e interessante da trajetória dos entrevistados, que consiste na “duplicidade ou mesmo a multiplicidade de crenças e de participações” (Negrão 2008, 269). Isso reflete o papel dominante das principais instituições eclesiásticas, embora elas atravessem “uma crise de autoridade no mundo moderno plural e secularizado, em que a religião se torna, cada vez mais, subjetivamente relevante” (idem). Ou seja, a hegemonia da Igreja Católica, ainda perceptível nos resultados das pesquisas, apaga o caráter sincrético do próprio catolicismo brasileiro.
Conforme o dicionário Houaiss, sincretizar significa “1. integrar (elementos de diferentes correntes) numa síntese, 2. combinar ou tentar combinar elementos (díspares); conciliar ou tentar conciliar (concepções heterogêneas).” Apesar de o sincrestismo ser emblemático em práticas religiosas de matriz africana, bem como nas chamadas doutrinas “New wave”, ele é flagrante tanto no escopo individual quanto em diversas práticas religiosas tidas como ilegítimas pela instituição católica. Para efeito ilustrativo, lembremos do jagunço Riobaldo, protagonista do clássico Grande Sertão Veredas, cuja visão religiosa sintetiza primorosamente essa característica.
A fala de Riobaldo é um bom exemplo da distinção individual entre fé e religião (cf. Boff 1994, 166), bem como do sincretismo religioso popular manifesto no seio do próprio catolicismo e das doutrinas pentecostais e neopentecostais, para cuja presença Rosa já atentava em Grande Sertões. Sem embargo, a peculiaridade dessa relação eclética com o sagrado afasta-se da instituição eclesiástica oficial, atendendo a uma lógica individual e subjetiva de relação com o divino, que se apresenta como um ponto fora da curva, conforme aponta Eduardo Hoornaert (2002) ao revisitar a obra de Thales de Azevedo.
Com efeito, esse catolicismo fora da curva estaria relacionado, por um lado, ao fato de a Igreja durante o período colonial recorrer a clérigos de patente inferior na hierarquia eclesiástica para realizar a catequização no interior do país, deixando o vínculo institucional com Roma concentrado nos centros urbanos ao longo do litoral brasileiro. Por outro lado, o catolicismo era compulsório. Assim, quem nascia no Brasil era automaticamente católico, enquanto índios, negros escravizados e até judeus eram obrigados a se converter, praticando deste modo um catolicismo para inglês ver:
Nesse contexto, as práticas de benzedeiras e curandeiros, capelas de beira de estrada, altares domésticos para o culto de diversos santos, bem como determinadas festas e folguedos, embora não reconhecidos institucionalmente pela Igreja, encontram legitimidade no sistema de crenças das pessoas, que inclusive mesclam doutrinas conforme o que lhes mais convém espiritualmente. No livro Igreja, Carisma e Poder Leonardo Boff (1994) faz uma crítica à estigmatização desse sincretismo, ao argumentar que a síntese e reinterpretação de elementos sagrados de diversas doutrinas é intrínseco ao próprio cristianismo. Neste sentido, conforme a fala de Riobaldo, na religiosidade popular brasileira, o que mais importa é rezar e ter fé.
18. maio 2020 at 10:18
que texto bonito Júlio, simultaneamente autobiográfico, etnográfico e humorístico, gostei muito, sempre que puder venho cá e diz-nos como podemos contribuir: links para quizzes com base nos teus textos, textos originais, fotos originais?
18. maio 2020 at 11:34
Oi Raquel! Obrigado! Toda contribuição é válida! Estou precisando de mais material sobre África. Se tiver e quiser compartilhar, será mais que bem vindo!